Pensamentos líquidos 26

Cemitério de Pianos II

«- A minha mãe está do trabalho. Volta às dez horas.
- Está do trabalho? Mas… ela disse-me que voltava às trinta e duas horas.
O Hermes abre os olhos todos, abre a boca em espanto simulado, com choque simulado, e diz:
- Às trinta e duas horas?
- Ah, não. Desculpe, senhor. A minha mãe volta às setenta e quarenta horas.
Como se estivesse admirado, o Hermes abre ainda mais os olhos e a boca. Do fundo dessa surpresa, diz:
- Às setenta e quarenta horas?
Durante um instante, a Íris não diz nada. Fica à espera. Os seus ombros finos tremem quando se ri. A Ana e a Elisa sabem que são mais crescidas e estão a conversar, sentadas em cadeiras pequenas, sob a claridade da janela. O Hermes levanta-se, puxa o braço da irmã e diz:
- Ela está a dizer que a mãe volta às setenta e quarenta horas…
A Íris ri-se sozinha. A Ana e Elisa olham na sua direcção e sorriem. A Ana diz:
- Oh…
A Íris, no meio de rir, diz:
- Volta às mil horas.
A Ana, a rir-se, olha para a Elisa e roda o indicador na testa. A porta abre-se de repente. A minha mulher, sem entrar, chama a Íris. Vem buscá-la para dormir uma sesta. O Hermes começa a fazer uma birra. Quer que a prima continue a brincar. A minha mulher começa a ralhar com ele. Ele vai começar a chorar, vai mesmo começar a chorar, quando levanta o carrinho dos bombeiros e o atira para o chão com toda a força.
A Íris tem quase três anos. Chega-se ao pé dele, encosta o dedo aos lábios e, muito séria, só para o Hermes ouvir, diz-lhe:
- Não choras. Eu vou dormir a sesta com a avó, mas volto ontem. Está bem? Volto às setenta e quarenta horas.
E deu-lhe um beijo na face.»

José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos, Bertrand Ed., pp. 175 e 176

Sem comentários: